Vinte e um anos depois de seu sepultamento, a prostituta Dewi Ayu ergue-se do túmulo.
Caminha até sua antiga casa, onde encontra Beleza, a mais nova de suas quatro filhas.
Beleza havia nascido 12 dias antes do enterro de Dewi Ayu . Como todas as suas gestações, ela foi fruto de estupro e/ou de sexo com um cliente.
Por conta disso, Dewi Ayu tentou matá-la ainda no ventre.
Não conseguiu. Mas se sentiu feliz, pois, ao contrário de suas outras filhas, a bebê era tão horrenda que ficou na dúvida se não era “um monte de merda”.
Deu a ela o nome de Beleza, um elogio à feiura. Em seguida, cobriu-se com uma mortalha e deitou-se à espera da morte.
Assim como Maria deu à luz o Filho de Deus e as duas esposas de Pandu trouxeram ao mundo seus pequenos deuses, o meu útero é um lugar onde os demônios depositam suas sementes, e assim nascem pequenos demônios de mim. E já estou farta disso, sentencia.
A partir daí, A beleza é uma ferida, romance de estreia do indonésio Eka Kurniawan, recua no tempo, posicionando sua protagonista como testemunha ativa das transformações sociopolíticas de seu país.
Vive-se a Segunda Guerra Mundial, e os japoneses acabaram de massacrar e tomar o domínio dos colonizadores holandeses.
Dewi Ayu está na cidade fictícia de Halimunda. Ali cresceu na fazenda de seus avós, até o exército nipônico a fazer prisoneira, em seguida prostituta.
Numa lógica deturpada, torna-se a melhor, a mais requisitada. Crava que fez sexo com 162 homens.
Durante esse período, dá à luz a três filhas exuberantes, que, em circunstâncias inimagináveis, irão se casar com as figuras mais importantes da história da cidade: o revolucionário Maman Gendeng, o comandante militar Shodancho e o comunista Kliwon.
Os turbilhões afetivos irão se compactuar aos turbilhões de natureza política, resultando em casos de violência, crimes e fatalidades; focos de conflitos e de resistência.
A melhor representação para o livro é a de uma grande cornucópia. Mas não uma comum, e sim uma de conteúdo sui generis.
Nada deve ser tirado ao pé da letra, nesse volumoso romance sitiado pela sátira e pela obscenidade, que combina realismo mágico, tragicomédia, folclore e superstição.
Estupro, incesto e pedofilia são descritos com uma naturalidade escandalosa.
Mulheres aceitam ser escravizadas sexualmente como se fosse um destino incontornável; o relacionamento carnal entre um adulto e uma menina de oito anos não causa espanto.
A certa altura, um personagem argumenta: Ela tem apenas 12 anos. Daí, um outro responde: Os cães casam aos 2 anos, e as galinhas, aos 8 meses.
Kurniawan é cruel no exame endoscópio da vida prosaica dos atores de sua trama, pois retratam o passado recente da Indonésia, uma nação formada por abusos praticados pela colonização e por intervenções bélicas, enraizando males sociais a exemplo da prostituição infantil, reconhecida internacionalmente.
Os fantasmas do tempo ganham as páginas de forma literal e metafórica, nesse triunfo da imaginação.
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Livro: A beleza é uma ferida
Editora: José Olympio
Avaliação: Excelente